Automutilação e Doenças Psiquiátricas
O Dr. Diego Tavares, médico psiquiatra, pesquisador do Grupo de Estudos de Doenças Afetivas (GRUDA) do Hospital das Clínicas da USP e coordenador do Programa de Transtorno Afetivo Bipolar (PROTAB) da Faculdade de Medicina do ABC, aborda nesta entrevista a automutilação, caracterizada por comportamento de agressão direta ao próprio corpo sem intenção consciente de suicídio e com intenção direta de produzir dor ou sofrimento físico. Essa frequente confusão mental encontra-se presente em diversos quadros psiquiátricos, nomeadamente no transtorno bipolar, no transtorno borderline de personalidade e na depressão.
GEN – Segundo estudos, pacientes que se mutilam, em sua maioria, não o fazem para chamar atenção, mas como consequência de uma desregulação emocional. De acordo com sua prática clínica, esta seria uma forma de estados depressivos que se manifestam na infância e na adolescência?
DT – Sim. Os episódios depressivos melancólicos puros, isto é, essencialmente lentificados, anérgicos e com baixos níveis de impulsividade (p. ex., quando a pessoa fica com humor deprimido, não sai da cama e tem pensamento bloqueado pela depressão) ocorrem quase exclusivamente em adultos e idosos, e raramente em crianças e adolescentes.
Hiperexcitabilidade cerebral, que comportamentalmente se manifesta com sintomas do polo maníaco (agitação) dentro da depressão, isto é, na depressão mista (depressão agitada, com intenso desespero, excesso de pensamentos, excesso de sofrimentos, inquietação constante e alta impulsividade), é muito frequente em crianças e adolescentes. Neste sentido, é fácil compreender que alterações de humor nessa faixa etária ocorrerão com psicopatologia diferente dos adultos, com quadros de muito mais agitação, aceleração psíquica, desespero e comportamentos impulsivos e autodestrutivos. Por isso, a automutilação, quando decorre de um quadro de desregulação emocional (já que possui outras causas, como busca de atenção social, de vingança, de sensações etc.), provavelmente é sintoma de um quadro depressivo misto.
GEN – É possível associar esse comportamento de compulsão e impulsividade ao transtorno obsessivo-compulsivo (TOC)? Por quê?
DT – Não, são situações bem diferentes, porque a escoriação repetitiva e simétrica do TOC não possui essencialmente o objetivo de produzir dor física, como na automutilação. No TOC, existe uma compulsão (uma necessidade urgente e recorrente) de produzir lesões, mas a busca é pelo ritual e pela simetria, e não por dor e sofrimento.
GEN – Como se define a automutilação e quais são as manifestações mais comuns com as quais o senhor tem se deparado no GRUDA?
DT – A automutilação é um comportamento de autoagressão física, sem intenção consciente de suicídio e com intenção direta de produzir dor ou sofrimento no próprio corpo. Apresenta-se de várias maneiras. O paciente, por exemplo, pode:
- Beliscar, pinçar, morder, arranhar, entalhar, cortar ou queimar a própria pele
- Bater parte do corpo em algo ou bater em si mesmo
- Interferir na cicatrização de feridas
- Esfregar a pele contra uma superfície áspera
- Passar cola no corpo e depois arrancar pedaços de pele
- Espetar agulhas pelo corpo
- Puxar o próprio cabelo
- Engolir objetos perfurocortantes.
GEN – Segundo estudos recentes, apenas 20% das pessoas que se mutilam não sofrem de transtornos psiquiátricos. Diante da alta prevalência, como se dá esta associação?
DT – Cerca de 20% dos indivíduos se mutilam em situações isoladas e esporádicas, muitas vezes sem dar continuidade a esse comportamento. São casos que nunca chegaram aos consultórios porque provavelmente não correspondem a um transtorno mental propriamente dito, mas a uma reação comportamental ao sofrimento. Os outros 80% que se mutilam apresentam sintomas subjacentes (geralmente não evidentes e por isso pouco diagnosticados), em sua maioria na esfera do humor (60%). Denominamos esse quadro de desregulação afetiva, pois compreende alterações emocionais que podem ir desde o campo da depressão, passando por irritabilidade e ansiedade, até o campo da mania no transtorno bipolar.
GEN – De acordo com sua experiência clínica, a automutilação costuma ter intuito suicida?
DT – A automutilação normalmente não apresenta intenção suicida direta, pois quem tem ideias de suicídio geralmente pensa em algo efetivo (pular de um prédio, enforcar-se, ingerir veneno etc.). É comum associar a automutilação à ideação suicida, mas é importante esclarecer que, na realidade, a maior parte dos pacientes que se machucam tem o objetivo de acabar com o sofrimento emocional, e não com a própria vida.
Para muitos pacientes, a automutilação translada a vivência emocional da dor psíquica para a dor física, proporcionando alívio. Por outro lado, também é comum que alguns adolescentes apresentem ideação suicida e busquem a automutilação como uma forma de lidar com isso, pois não desejam e não aceitam pensar em suicídio (por questões pessoais, culturais ou religiosas).
GEN – Qual é o perfil dos pacientes mais acometidos por esse problema e como ele costuma evoluir?
DT – Segundo um recente estudo inglês (Victor et al., 2016), 88% dos pacientes são do sexo feminino; a idade média atual é 16 anos; 60% têm transtorno do humor diagnosticado; 90% optam por se cortar ou se arranhar; a idade média relatada para início da automutilação é aos 11 anos; o tempo médio de duração do comportamento de automutilação é de 6 anos; na maioria das vezes, o objetivo da autoagressão é lidar com a desregulação emocional; quando o objetivo é a atenção social (“chamar a atenção para o sofrimento”), o comportamento é mais comum em mulheres.
Este estudo também mostra que as circunstâncias que levam cada pessoa a apresentar esse comportamento são estáveis, isto é, caso uma pessoa comece a se cortar por conta de irritabilidade, provavelmente se cortará quando apresentar de novo esse sintoma, e não outros.
GEN – Quais os fatores que influenciam o nível de gravidade desse comportamento?
DT – Os fatores que mais interferem são os níveis de agitação (energia psíquica) e de impulsividade. Quando o indivíduo é impulsivo e está muito agitado, desesperado, com grande sofrimento emocional, ele não pensa duas vezes antes de fazer um ou vários cortes em si mesmo, de maneira violenta e agressiva. Isso representa um grande perigo, pois pode, inclusive, levar ao suicídio, que não era a priori o objetivo desejado.
GEN – O DSM-5 (5ª edição do manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais) propõe que a automutilação seja uma entidade diagnóstica à parte, devido à falta de homogeneidade na sua descrição, o que dificulta pesquisas epidemiológicas e clínicas. Qual é a sua opinião quanto a isso?
DT – A medida adotada pelos manuais de pesquisa, como o DSM-5, visa muito mais à pesquisa do que ao atendimento clínico propriamente dito, mas é esperado que os conhecimentos adquiridos na pesquisa clínica e na medicina baseada em evidências sejam a base das condutas na psiquiatria como um todo (o que ainda não é uma realidade, porque a maioria dos psiquiatras é de uma geração anterior, baseada no empirismo).
Dessa maneira, esta postura é muito boa para separar cientificamente os subgrupos de pacientes que se automutilam e definir qual a função desse comportamento em cada caso. Entretanto, na clínica psiquiátrica diária, com uma abordagem diagnóstica hierárquica, é possível fazer um rastreamento de todos os sintomas apresentados e concluir que a automutilação não é uma doença à parte, e sim um sintoma de várias doenças.
A doença mais frequentemente associada à automutilação nos estudos científicos (ao contrário do que se imagina) não é o transtorno borderline de personalidade, e sim o transtorno bipolar do humor. Neste caso, é bom ressaltar que estamos nos referindo às formas leves de transtorno bipolar (TB tipo II, no qual predomina comportamento depressivo, ansioso, irritado e agitado, e não TB tipo I, com fases de euforia, e que é mais raro).
Mesmo no transtorno de personalidade borderline, a automutilação provavelmente ocorre em quadros depressivos com características mistas, isto é, depressões com muita ansiedade e inquietação no pensamento e no comportamento (quadros que mais levam de fato ao suicídio). Dessa forma, o diagnóstico é importante para se definir o plano de tratamento.
GEN – Quais são as formas de diagnóstico?
DT – O comportamento deve ser recorrente e ter a finalidade de produzir dor e sofrimento. As motivações dos pacientes que se cortam são várias, devem ser investigadas ativamente e podem ocorrer em conjunto. Alguns exemplos de motivações e justificativas dadas pelos próprios pacientes incluem:
- Desregulação do afeto: “me mutilo para me acalmar”, “para liberar a pressão emocional que se acumulou dentro de mim”, “para reduzir a ansiedade, a frustração, a raiva ou outras emoções esmagadoras dentro de mim”
- Autopunição: “para me punir”, “para expressar a raiva de mim mesmo por ser inútil ou estúpido”, “para me sentir infeliz ou com nojo de mim mesmo”
- Autocuidado: “para poder cuidar de mim mesmo (cuidando da ferida)”, “para provocar uma lesão física mais fácil de cuidar do que minha aflição emocional”
- Dificuldade de se sentir: “para me causar dor e parar de me sentir entorpecido ou sem sentimentos”, “para tentar sentir algo (em oposição a nada), mesmo que seja dor física”, “para me certificar de que ainda estou vivo quando não me sinto real”
- Evitar o suicídio: “para evitar o impulso de tentar o suicídio”, “para responder a pensamentos suicidas sem realmente tentar suicídio”, “para pôr fim aos pensamentos suicidas”
- Testar o vínculo com alguém: “para manter o vínculo com alguém que está ameaçando ir embora”
- Influenciar outras pessoas: “para mostrar aos outros a extensão da minha dor emocional”, “para obter cuidados ou ajuda de outros”
- Demonstrar força: “para ver se eu posso suportar a dor”, “para demonstrar que sou forte”
- Vingança: “para me vingar dos outros”, “para tentar machucar alguém próximo a mim ou fazê-lo sofrer por mim”.
GEN – Segundo pesquisas, seria necessário o desenvolvimento de instrumentos diagnósticos mais precisos para identificar e tratar precocemente esses quadros específicos, evitando sua cronicidade. O senhor concorda?
DT – Sim, porque muitas vezes o médico ou o profissional que atende alguém que se mutilou já pensa que esse comportamento é um sinal de suicídio e que o paciente necessita de internação para não se matar. Porém, na maioria das vezes, não é isso que está ocorrendo. A automutilação é um comportamento grave e de risco, mas que precisa ser avaliado, e diagnósticos subjacentes precisam receber o tratamento adequado para que o paciente se recupere.
GEN – Quais são as principais medidas terapêuticas?
DT – O tratamento da automutilação deve sempre ser precedido do diagnóstico de transtorno de humor ou de qualquer outra condição psiquiátrica associada, visto que a melhora do quadro basal provavelmente trata e estabiliza o comportamento de automutilação. Estabilizadores de humor e medicamentos com propriedade presumivelmente anti-impulsiva (anticonvulsivantes e antipsicóticos) fazem parte do arsenal terapêutico recomendado, e o uso de antidepressivos, pelo menos isoladamente, não é recomendado, porque pode piorar o quadro por intensificar a agitação psíquica. A abordagem comportamental de terapia é sabidamente bem recomendada, com um corpo de evidências bem estabelecido para o manejo desses quadros.